Sob o discurso da Lei e da Ordem

Por Érica Meireles e Gustavo Mascarenhas Lacerda Pedrina

Sob o discurso da Lei e da Ordem

Os jornais noticiam nesta semana que, na última segunda-feira, a 10ª Vara Criminal de São Paulo aceitou a denúncia criminal contra Fábio Hideki e Rafael Lursvarghi por, entre outras acusações, associação criminosa. O inquérito sobre o caso concluiu que Fábio e Rafael faziam parte de uma associação criminosa, além de trazer em seu texto que os dois pareciam manter um “relacionamento íntimo” e seriam parte de um “movimento de black blocs”.

É descrito pela polícia que Fábio possuía um artefato explosivo rudimentar e Rafael tinha um frasco de iogurte que, ainda segundo os policiais, cheirava combustível. Há imagens públicas e veiculadas na internet do momento em que houve a detenção dos manifestantes: nenhum desses materiais é mostrado nas gravações.

No Rio, Eloísa Samy, advogada militante, foi denunciada pelo Ministério Público pelo mesmo delito, organização criminosa, por supostamente ceder sua casa para reuniões de planejamento de manifestações Em São Paulo, advogados ativistas foram detidos sob acusação de desacato à autoridade quando solicitaram identificação de Policiais enquanto Servidores Públicos em atividade, o que demonstra a utilização de discricionariedade pautada na conveniência política. Quando protestar é considerado crime, afastamos a consolidação do pretendido Estado Democrático de Direito. Diante disso, o que cada um de nós pode fazer pela
Democracia? A indiferença não deve nos consumir.

A Constituição brasileira de 1988 contemplou um modelo de Estado constituicional e democrático de Direito. Não há dúvida que dos seus princípios e regras podemos pressupor importantes limites à intervenção penal. O Brasil enfrentou, por 21 anos, um período em que apenas hoje a maior parte da sociedade reconhece que a liberdade era tolhida de maneira brutal, através da censura e da caça a opositores. A verdade é que, durante os anos que se seguiram, ainda há tortura, letalidade policial e outras formas de repressão e violência, até então, proporcionalmente distanciadas de quem tem maior capital social, político e econômico. Com o retorno em massa dos setores de classe média às ruas, escancaramos novamente que a Democracia pretendida não está consolidada.

A história conta que há exatos 30 anos um movimento de manifestantes saiu às ruas em oposição ao governo dos militares para pedir democracia e justiça no Brasil. Faziam parte deste movimento políticos e jogadores de futebol, membros do Ministério Público, da Magistratura, advogados, operários, professores. Se anteriormente ou durante as “Diretas Já” pessoas tivessem cedido frente à ameaça de prisões, não teríamos avanços em busca da Democracia, como a possibilidade de escrever estas linhas.

De volta ao contexto atual, desde junho de 2013, ganharam visibilidade no País – sobretudo, através de imagens de detenções pelo “porte de vinagre”- as inconstitucionais prisões para averiguação. Neste ano, em que completamos cinco décadas do início da ditadura, tomou corpo um Projeto de Lei do Senado o qual retoma a relação entre terrorismo e direito à manifestação.

O PLS 499/2013 se propõe a criminalizar as manifestações como se fossem atos de terrorismo. É inadmissível que passemos a destruir até mesmo o que temos de democracia formal.

Há registro dos chamados “atos de vandalismo” tanto nas manifestações de 1984 quanto nas de 2014. Basta ler os jornais daquela época e os de agora. Como hoje reconhecemos os protestos de 30 anos atrás? Não podemos aceitar a criminalização de movimentos sociais que pedem mudanças na vida política nacional, sejam eles pela liberdade de expressão, questões de gênero, moradia ou por outros direitos e superações. Fábio, Rafael e Eloisa e tantos outros não são criminosos, mas sim, instrumentos através dos quais o Estado impõe autoritarismo para inibir questionamentos e enfrentamentos políticos.

O discurso do crime organizado adotado no Brasil deriva diretamente do discurso estadunidense de um século atrás do organized crime que procurava exatamente criminalizar grupos sociais, especialmente étnicos, sob o argumento de que um tipo de comportamento, tido como criminoso, não fazia parte da comunidade daquele país, mas era característica de um submundo composto por um grupo de “maus cidadãos”, os quais ameaçavam destruir a comunidade. Era o discurso da lei e da ordem.

A nebulosidade do conceito de organização criminosa pode explicar a proliferação de denuncias por suposta pratica deste delito, utilizado pelo poder público para justificar a eliminação ou redução de garantias democráticas do processo penal. A frequente orientação acusatória de alguns membros do Ministério Público tornou prática a denunciação pelo crime do artigo 288 do Código Penal, associação criminosa, para supostos crimes praticados por vários indivíduos. Não é difícil notar o erro de avaliação nessa hipótese, sendo impossível afirmar a existência de objetivo comum de reunião estável de tais indivíduos para a prática de crimes quando, na verdade, querem apenas se manifestar politicamente.

A polícia de 2014 cerca, fotografa, agride e prende manifestantes com base em evidências frágeis e inconsistentes, como faziam as forças de segurança do período de exceção. Quem criminalizará e banirá o terrorismo estatal? Como restarão as agressões, lançamentos de bombas de gás lacrimogêneo – e seus estilhaços-, tiros de balas de borracha – ou de arma de fogo, para o altocontingentes e armamentos desproporcionais a qualquer manifestação?

Prender Fábio, Rafael, Eloisa ou qualquer manifestante com base num discurso de lei e ordem, conforme temos tristemente testemunhado, é um abuso das Instituições sobre o qual a sociedade talvez só se dê conta, de fato, em momento posterior à consolidação de absurdos, como a eventual aprovação da PLS 499/2013, detenções de muitos outros manifestantes e uso de violência em maior escala. Buscamos recuperar o passado, mas ainda criminalizamos o presente. Porém, a lição aprendida por alguns membros do Poder Público é de que devem agir mais “cirurgicamente”:

encarceramento em massa para as parcelas mais pobres, enquanto agem de modo menos seletivo em
termos socioeconômicos em combate a manifestantes. Estende-se a violência.

*Érica Meireles é graduanda pela Faculdade de Direito da USP e Coordenadora-geral da Associação
dos Servidores da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, esteve presente nas manifestações populares desde 2010.

*Gustavo Mascarenhas Lacerda Pedrina é autor de AP 470, graduando pela Faculdade de Direito
de Ribeirão Preto da USP, foi pesquisador Programa de Direito Penal da Utrecht University, na Holanda entre 2013 e 2014.


Publicado em 29 de Julho de 2014 no site politica.estadao.com.br