Direito e Futebol: duas paixões mais próximas do que se imagina

Direito e Futebol: duas paixões mais próximas do que se imagina

Por Rafael Valentini

Direito e Futebol. Para a maioria – como não poderia deixar de ser -, duas coisas que não se misturam. De todo jeito, em raras oportunidades elas dividem a mesma pauta de discussão nos botecos e mesas redondas Brasil afora, como nos casos envolvendo o rebaixamento da Portuguesa de Desportos no Brasileiro de 2013, os jogos anulados do Corinthians no Brasileiro de 2005, o São Paulo por conta do “gato” de Sandro Hiroshi no Brasileiro de 1999, além de outros casos isolados.

Mas a proximidade entre o Direito e o Futebol não se limita apenas às discussões acaloradas nos tribunais desportivos – ela é muito maior do que se imagina. Veja.

Quais são as duas peças mais intocáveis no tabuleiro do Futebol? Aquelas que, quando vítimas do mais leve desvio de conduta, o árbitro já apita com gosto a falta? Os zagueiros? Claro que não. Os goleiros! Adotando o dialeto de um dos técnicos mais renomados da atualidade, Tite, a “intocabilidade” dos goleiros lembra muito a garantia constitucional de sigilo da fonte dos jornalistas. É impressionante como provas e documentos relativos à processos em segredo de justiça simplesmente pipocam no Jornal Nacional. E eu me pergunto: “Ué, não é sigiloso isso? Por que raios isso está sendo divulgado na televisão então?”. Simples, o jornalista tem sigilo da fonte, então não vai entregar ninguém. E coitado do ousado que contestar essa garantia constitucional perante um jornalista, ou perante qualquer estudante que esteja nos arredores da Faculdade Cásper Líbero.

Aliás, não só jornalistas se debruçam neste postulado constitucional. Em um caso de homicídio aqui do escritório, uma afiliada da TV Record fez uma matéria com uma testemunha presencial do crime, distorcendo seu rosto na imagem transmitida. Essa reportagem foi juntada aos autos. Pedimos ao juiz da instrução a identificação dessa testemunha, já que o depoimento dela muito favorecia a defesa de nosso constituinte (uma possível legítima defesa). Mas adivinha? Veio o despacho dizendo que o jornalista tinha o sagrado sigilo da fonte. Poxa, juiz, peça ao jornalista a identificação da testemunha e, se ele quiser, que se recuse a fornecer!

Moral da história: a garantia do sigilo da fonte do jornalista é mais importante do que a plenitude de defesa do acusado em processo de rito do júri, assim como o goleiro é o mais inviolável entre os jogadores que estão dentro de campo.

Seguindo as curiosas e envolventes coincidências entre o Direito e o Futebol, já parou para pensar, caro leitor, como o princípio do devido processo legal e o árbitro são figuras parecidíssimas? Ambos são norteadores. Embora esteja rodeado de 22 marmanjos, ninguém tem mais autoridade, respeito, e importância na condução do jogo do que o árbitro. Isso me lembra aquelas aulas de introdução ao estudo de qualquer coisa em que os docentes nos ministram uma chuva de princípios. Mas perceba que, independente da matéria, todos os princípios respeitam o devido processo legal. Contraditório, ampla defesa, identidade física do juiz, imparcialidade, paridade de armas, proporcionalidade, razoabilidade, e etc. Todos estes possuem suas raízes, ou estão em harmonia, com o preceito máximo do due process of law. Sempre que nós, advogados, pretendemos arguir uma preliminar de nulidade, o princípio do devido processo legal é o coringa que aparece nas nossas mentes. Portanto, como hoje em dia tudo vira princípio, é uma tarefa fácil imaginar ocapi di tutti i capi dos princípios do Direito rodeado de outros 22 princípios, que sequer ousam desrespeitá-lo.

Outra jocosa semelhança é verificada nas mesmíssimas emoções que dominam os atores do tribunal do júri e os jogadores que disputam as partidas da Copa Libertadores da América. Não sou jogador de Futebol, mas uma coisa é certa: esses caras entram com outro espírito em jogos de Libertadores pelo fato de serem… jogos de Libertadores. Se fosse mais um jogo de campeonato estadual, certamente o cara não entraria com a mesma pilha, com a mesma vontade de dar carrinhos, com o mesmo sangue no olho perante o adversário (que em Libertadores é promovido ao nível de inimigo).

Mesmo raciocínio serve para o advogado e para o promotor de justiça em casos de júri. Quando estão indo apenas para mais uma audiência na carreira, ambos não vão com o mesmo espírito de Libertadores, se respeitam mais como partes e, quando muito, trocam pequenas farpas. Agora, quando é dia de sessão plenária de júri… O julgamento vira um Corinthians x Boca Juniors, Flamengo x River Plate, Internacional x Peñarol. Advogado e promotor já não são mais tão cordiais. Qualquer meia colocação errada ou mais dura durante a fala aos jurados a outra parte já pede para constar em ata “o absurdo”, interrompe o discurso de quem está na vez de falar. E assim começa a gritaria, o juiz-presidente se vê obrigado a intervir, os jurados não entendem mais nada… o verdadeiro “pega pra capar”, tal como como ocorre entre os jogadores sulamericanos na competição mais cobiçada do continente.

Direito e Futebol também lembram um ao outro por serem absolutamente públicos. O mais legal do Futebol é ver o estádio cheio, abarrotado de torcedores, com cânticos entoados durante os 90 minutos. No Direito, além da própria Constituição Federal prever que todos os julgamentos serão públicos, é comum julgamentos de competência do júri apresentarem casa cheia. Mas, como toda regra, sempre há exceções.

Por vezes o processo corre em segredo de justiça, o que impossibilita qualquer do povo ter acesso aos autos. Já no Futebol, vira e mexe um tonto na arquibancada arremessa algum objeto no jogador do time adversário. Na década passada, por exemplo, a Vila Belmiro era o principal cenário dessas finezas. Como consequência deste ato de amor ao próximo, o clube mandante perde o direito ter sua torcida em jogos futuros. Assim, embora a publicidade seja uma característica inerente ao Direito e ao Futebol, por vezes o povo precisa aceitar o fato de que o espetáculo será realizado às moscas.

Para que não fique longa a leitura, resumidamente podemos citar como outras coincidências que o Direito e o Futebol guardam entre si: o gol no Futebol é a publicação da decisão absolutória no Direito (para o advogado de defesa, claro); o pênalti no Futebol é a nulidade absoluta no Direito (ambas são as mais graves das infrações); o volante marcador e brigador no Futebol (o famoso carregador de piano) é o estagiário proativo e diligente no Direito; o centroavante artilheiro à la Ronaldo no Futebol é o advogado que traz bastante cliente para o escritório no Direito (o re$pon$ável pela alegria geral); a convocação para uma Copa do Mundo no Futebol é a nomeação para o Supremo Tribunal Federal no Direito; o time que só se defende na retranca e não quer saber do jogo no Futebol é o advogado que não quer saber de aparecer na delegacia para ver o inquérito de seu cliente para não chamar a atenção; e por aí vai.

Um é ciência, o outro é esporte. Mas a paixão pelos dois é tão grande, que é capaz de fazer uma pessoa do Direito, fanática por Futebol, escrever algumas linhas sobre as semelhanças dessas duas coisas que, com toda certeza, são responsáveis por inúmeras e inesquecíveis emoções do articulista.

Rafael Valentini  é Advogado criminal no escritório Feller e Pacífico advogados, formado pela Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie e membro do Instituto de Defesa do Direito de Defesa – IDDD