Fair Trial e Trial By Media: Notas sobre um julgamento espetacular

Por Gustavo Mascarenhas Lacerda Pedrina

Fair Trial e Trial By Media: Notas sobre um julgamento espetacular

O julgamento da Ação Penal 470/MG, apelidada de “mensalão”, continuará num futuro próximo com a fase dos embargos infringentes, recursos capazes de mudar as penas impostas a 12 dos principais réus de maneira decisiva. Desde agosto de 2007, quando recebeu a denúncia contra 38 réus, o STF se dedica a julgar esta ação penal. Cinco anos depois, um espetáculo diário levou a AP 470, o STF e os réus às manchetes por quase um semestre. Acabamos de assistir ao mês dos embargos declaratórios e, por seis votos a cinco, prevaleceu o cabimento do julgamento dos embargos infringentes. Em seu voto, o decano da Corte, Ministro Celso de Mello, lembrou  que o STF deve assegurar é uma leitura constitucional do julgamento, livre de pressões, um fair trial.

Tão logo um caso penal surge, torna-se imediatamente matéria de jornal, com este não foi diferente: durante sete anos, desde a CPMI dos Correios, 12 pessoas carregaram injustamente o título de “mensaleiros”. O próprio processo, neste caso, serviu de pena injusta aos corréus, inocentados pela palavra Suprema.

Boa parte disso se deu pela exposição midiática de seus nomes, de suas famílias, de um julgamento público levado ao pé da letra. O Brasil é o único país no mundo a transmitir integralmente os julgamentos de sua Suprema Corte e isso tem consequências sérias nos casos que passam ao vivo pela TV Justiça, ainda mais na esfera criminal.

O princípio da publicidade, argumento dos que defendem as transmissões, é tão constitucional quanto o direito à intimidade e não pode ser subvertido em favor de julgamentos para o público. A liberdade de informação e formação de opinião do indivíduo não pode ser sobreposta à privacidade do acusado. São vários os exemplos de países que tornam pública apenas a decisão dos juízes, como nos casos da Suprema Corte norte-americana ou da Corte Constitucional Alemã.

Democracia só existe de fato quando a imprensa é verdadeiramente livre, mas a boa imprensa só deixa seu espectador verdadeiramente livre para formar opinião quando dá voz a todos os lados de uma questão. O contrário disso não passa de linchamento moral. Dalmo Dallari ensina que “A imprensa deve ter o direito de ser livre, a fim de que possa manter o povo informado de todos os fatos de alguma relevância para as pessoas e a humanidade, que ocorrerem em qualquer parte do mundo. (…)como é evidente, esse direito e essa garantia não são um favor ou privilégio aos proprietários dos veículos de comunicação de massa, mas têm sua justificativa precisamente no caráter de serviço público relevante, da imprensa. Mas dos mesmos fundamentos que justificam o direito e a garantia de liberdade decorre o dever de informar honestamente, com imparcialidade, sem distorções e também sem omissões maliciosas, sem a ocultação deliberada de informações que possam influir sobre a formação de opinião pública. Assim, a liberdade de imprensa enquadra-se na categoria de direito/dever, semelhante a outros de relevante interesse social, como o sufrágio.”[1]

Este dever, porém, dificilmente é respeitado no Brasil. A imprensa se protege no seu direito de informar para reportar, distribuir “informações” e “evidências” nem sempre obtidas por meios lícitos.  Durante todo o julgamento da AP 470, por exemplo, “especialistas” apontavam nas transmissões de canais de notícias 24h os possíveis desdobramentos do julgamento e faziam previsões sobre a sentença, sobre os recursos e até sobre a execução das penas, mesmo sendo jornalistas sem qualquer formação jurídica[2].

Entrevistado para o livro que organizei (AP 470: análise da intervenção da mídia no julgamento do mensalão a partir de entrevistas com a defesa. São Paulo: LiberArs, 2013), Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, advogado de Duda Mendonça e Zilmar Fesrnandes neste processo declarou que “a pior coisa para os réus dessa ação foi a Globo ter perdido as olimpíadas para a Record”. De fato, no dia 29 de julho de 2012, as vésperas do início do julgamento, as buscas pelo termo “mensalão” no Google foram maiores do que por “Avenida Brasil”, então novela do horário nobre da Rede Globo; no dia 3 de agosto de 2012, um dia depois do começo do julgamento, as buscas pelo termo “mensalão” superaram em quatro vezes as buscas pela novela do horário nobre[3].

Por luta de todos aqueles que se levantaram pela redemocratização, ainda temos bons juízes e uma imprensa livre. Se quisermos prevenir a corrupção verdadeiramente, não podemos entender esta nova fase do julgamento da AP 470 como uma oposição de heróis e vilões (o que aconteceu injustamente em 2012, quando o Ministro Joaquim Barbosa era alçado à posição de justiceiro nacional[4]). Esta é uma oportunidade para o país demonstrar que quer virar a página da corrupção, e o papel da imprensa, investigando, é tão fundamental e tão constitucional quanto o respeito à vida privada daqueles que estão sentados no banco dos réus e podem ser inocentados (ou ter suas penas reduzidas, pelo reconhecimento de equívocos da Corte, neste caso).

Que o Supremo quis passar a mensagem de que o país não tolerará um novo mensalão, é certo. As manifestações vistas nas ruas em junho passado traziam gritos de combate à corrupção, o que todos desejamos que se realize agora e no futuro, a questão aqui é a que custo. Nenhum réu pode sofrer, durante anos, a violência de um julgamento público, mais ainda quando 12 deles eram inocentes, segundo o próprio STF.

A discussão, por exemplo, de mecanismos que inibam a corrupção, como a recomendação de políticas de compliance, de acordo com as legislações mais modernas, é muito mais urgente do que a falsa solução da transformação da corrupção em crime hediondo.

A volta do “mensalão” às manchetes pode ser utilizada de maneira bem mais proveitosa: para discutir as causas do problema e as maneiras de preveni-las, no lugar da discussão vazia e passageira sobre a vida deste ou daquele réu ou da colocação de ministros na capa de revistas semanais como “homem capaz de mudar a história”. Este tipo de ação, que não passa de uma tentativa de influenciar o julgamento a partir da “opinião pública”, é prejudicial para a democracia e para as instituições que a compõe, não passam de um trial by media[5].

O fim do julgamento ficará para 2014, ano eleitoral e importante oportunidade para o eleitor se conscientizar. Como lembra Helena Regina Lobo da Costa “São crescentes os casos de corrupção submetidos à justiça penal, com ampla cobertura pela imprensa. Todavia, não têm gerado na população nada além de uma pretensa escandalização vazia, supérflua e fugaz, que não gera mobilização ou mudança de comportamento. O brasileiro diz indignar-se com a corrupção, mas na eleição seguinte, ao votar, não considera o passado corrupto de candidatos como dado importante na tomada de decisão.”

O julgamento da AP 470 está longe de ser o julgamento do século[6], mas como um julgamento com 38 réus, boa parte deles políticos importantes no cenário nacional, que o Supremo Tribunal Federal decidiu julgar, não há nele nada de comum. A polêmica entorno do cabimento dos embargos infringentes foi só mais um exemplo disto. A pressão sobre réus, advogados, membros da procuradoria e Ministros foi e continua sendo intensa. Decidido o cabimento dos infringentes, talvez possamos agora tirar mais uma lição deste julgamento, além daquela correta e necessária da mensagem que a Corte deixou sobre o endurecimento no tratamento da corrupção, a de repensar a publicidade dada aos julgamentos no Brasil e ao tratamento da imprensa aos casos penais.



[1] DALLARI, Dalmo de Abreu. Os silêncios da imprensa. Rio de Janeiro: Jornal do Brasil, 09.12.2006. P.A9

[2] Segundo NILO BATISTA:“Como o discurso criminológico da mídia não representa o produto de um esforço na direção do saber, mas sim uma articulação retórico-demonstrativa daquele credo a que nos referimos, ele selecionará os especialistas segundo suas opiniões coincidam ou desmintam daquelas crenças. BOURDIEU atribui-lhes o nome provocante de fast-thinkers: “Se a televisão privilegia certo número de fast thinkers que propõem um fast-food cultural, alimento cultural pré-digerido, pré-pensado, não é apenas porque (…) eles têm uma caderneta de endereços, sempre a mesma (sobre a Rússia, o sr.X, sobre a Alemanha, o sr. Y): há falantes obrigatórios que deixam de procurar quem teria realmente alguma coisa a dizer, em geral jovens ainda desconhecidos, empenhados em sua pesquisa, pouco propensos a frequentar a mídia, que seria preciso ir procurar, enquanto se tem à mão, sempre disponíveis e dispostos a parir um artigo ou a dar uma entrevista, os habitués da mídia”.”BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. In: revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 11, n. 42. São Paulo: RT, 2003. P.250

[3] FALCÃO, Joaquim. Mensalão: diário de um julgamento. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013. P. 31.

[4] “Joaquim Barbosa é o justiceiro nas redes sociais.” O Globo. Disponível emhttp://oglobo.globo.com/pais/joaquim-barbosa-o-justiceiro-nas-redes-sociais-6024965 Acessado em 18.07.2013

[5] “Enquanto o processo judicial instituído é dotado de diversas fases e não pode ser rápido, sob pena de gerar uma decisão baseada em emoções, o processo midiático é frenético e inquisitório: o mesmo órgão investiga, acusa sem defesa, julga e executa a pena de execração pública, de destruição da honra, da vida privada, da imagem, da identidade e, é claro, da presunção de inocência” [5] BUDÓ, Marília de Nardi. Mídia e teoria da pena: crítica à teoria da prevenção geral positiva para além da dogmática penal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 21, n.101. São Paulo: RT, 2013.

[6] SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Julgamento do século?. Jornal Valor Econômico, 02.08.2012.


Publicado em 24 de Setembro de 2013 no site www.brasil247.com