Vamos falar a verdade
- Gustavo Mascarenhas, Manifestação, Político, Segregação
- 27/03/15
Por Gustavo Mascarenhas
Vamos falar a verdade
Precisamos dizer com todas as letras que existe racismo, homofobia e discriminação de gênero no Brasil. Mas apenas dizer isto sem a proposição de medidas práticas e eficazes no combate ao problema não passa de comodismo e proveito do sofrimento alheio. Defender a cassação de um deputado pelos absurdos que diz nada mais é do que de aproveitamento politico, que vem sendo tolerado e até estimulado pela sociedade brasileira.
Bolsonaro candidato foi o mais votado no Rio de Janeiro, elegeu, com plataforma eleitoral semelhante, um filho para o mesmo cargo em São Paulo e tem outros dois filhos ocupando os cargos de vereador e deputado estadual também no Rio. O que diz (e já dizia antes destas últimas eleições) o patriarca do clã representa parte do povo brasileiro. Quem vota numa pessoa que diz que “só não estupraria porque ela não merece” apoia alguém que estupraria uma pessoa se esta “merecesse”, a seu julgamento, aplaude a apologia ao crime praticada. É preciso deixar as coisas claras.
A Procuradoria da República muito corretamente denunciou Bolsonaro por incitação ao estupro, mas, enquanto sociedade, precisamos ir além. Ouvir estes absurdos pode servir para o Brasil deixar de lado a hipocrisia. Podemos escolher se este é o momento que vamos lembrar como o de mais um processo contra um deputado ou se nos tornaremos um país que reprime verdadeiramente o ódio. E não há outro caminho para isto que não seja a promoção da igualdade e das liberdades individuais.
Vamos falar a verdade: nem todos gritavam por algo além do que os vinte centavos nas manifestações de 2013. Muitos estavam lá pelo simples prazer do grito, do sentimento de fazer parte de uma massa, de juntos serem mais fortes. Pode-se até dizer que eram contra a corrupção, mas quem não é? Mesmo com milhões nas ruas políticos notadamente corruptos foram reeleitos. O que mudou? Ao contrario do que pode parecer, nem o combate a corrupção sofreu qualquer modificação – as últimas operações são baseadas num conjunto normativo que já estava pronto, votado e promulgado. Nenhuma outra norma neste sentido foi feita em razão dos protestos (pior, estas novas, que estão agora em vigor, não foram sequer regulamentadas e são aplicadas ao gosto do juiz, o que seria um problema de primeira ordem numa democracia séria). Gritamos demais sem fundamentar nossos questionamentos. Usamos o direito como a via fácil de resolução dos nossos problemas, é como se apenas criar uma lei transformasse a realidade brasileira.
Daqui há alguns dias a lei que criminalizou o racismo completará 26 anos e são raros os casos em que racistas foram condenados no Brasil. Não porque o racismo tenha estagnado, mas porque a aplicação da norma penal, ainda que indispensável, neste caso é demorada e pouco didática. Desde há muito tempo, está no Congresso o PLC 122/2006, que criminaliza a homofobia. Para discutir o Projeto, o Senado chamou até o Pastor Silas Malafaia, de especialidade bastante duvidosa em relação ao tema. Nesta quarta-feira o Senado aprovou a tipificação do feminicídio, mas não discute formas de empoderamento da mulher. Apenas criminalizar a homofonia ou o feminicídio não parece ser o caminho mais adequado. O direito penal não pode ser nem a primeira nem a única resposta para os problemas da sociedade brasileira.
Num país que vale o que está escrito e repetido, criminalizar o racismo, homofobia e feminicídio são medidas essenciais, mas não podem ser adotadas de maneira isolada. Para que discursos de ódio deixem de encontrar tamanha repercussão nas urnas é necessário que adotemos medidas mais práticas. A educação pela lei é uma via muito mais eficiente.
Neste sentido, a adoção universal de cotas raciais nas universidades públicas brasileiras, a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo e o direito da mulher de decidir quanto ao próprio corpo (por exemplo com a legalização do aborto ou a revogação do oferecimento obrigatório de denúncia em casos de aplicação da lei Maria da Penha) são muito mais eficazes do que a simples promulgação da norma penal. Somos um país pardo de universidades brancas, uma sociedade que protesta por direitos mas não deixa sua população gay se casar ou a mulher decidir se quer levar a diante a queixa contra seu agressor. A parcela da população que se impressiona com o discurso de Bolsonaro precisa também se impressionar com a sonegação destes direitos pelo Estado brasileiro.
Não basta estarmos “#fechadoscomoTinga” no Twitter, devemos estar também na pressão aos parlamentares que acabam de ser eleitos. Isto vale para o racismo e para o assedio as mulheres ou aos direitos dos casais homossexuais, que não querem nada mais do que o natural e que isto seja reconhecido por lei – e não parece defensável a tese de que um Estado democrático e laico neste século deixe de reconhecer a união de pessoas que se amam, por razões inexplicáveis de tradições passadas. No caso da União de homossexuais é notável que após seu reconhecimento pela Resolução 175/2013 do CNJ, o PL 6583/2013, conhecido como estatuto da família e que reconhece família apenas como a união de um homem e uma mulher, teve sua tramitação acelerada. Assistir o Congresso dar passos para trás na proteção de direitos alheios passivamente é um apoio tácito aos discursos de Bolsonaro.
Se queremos menos discursos vergonhosos precisamos pressionar nossos parlamentares para que garantam mais direitos para todos. É comum em outros países como os EUA e a Holanda que os eleitores façam isto por redes sociais, cartas e telefonemas aos gabinetes os parlamentares que elegeram. Aqui, apesar de não adotarmos um sistema distrital, sabemos quem são os parlamentares eleitos em cada região, mas o máximo que vemos são petições eletrônicas de ocasião. É muito mais frutuoso para a democracia que os partidos discutam questões sérias do que se aproveitem do conservadorismo alheio. Há hoje vários abaixo-assinados pela cassação de Bolsonaro nas redes sociais, mas nenhum com tantas assinaturas pedindo a legalização do casamento gay ou pela adoção de cotas raciais nas universidades. Ao invés de aumentarmos a visibilidade de quem prega um retrocesso inaceitável deveríamos debater, com a mente aberta para o diálogo, posições que não são unanimidade, mas que tocam em direitos essenciais de alguns. Cabe a todos nós, eleitores, protestarmos pelos direitos dos outros, para que um dia deixemos de ouvir absurdos sobre os nossos.