Uso de câmeras corporais pela Polícia Militar: avanços, desafios e o futuro do projeto Olho Vivo

Uso de câmeras corporais pela Polícia Militar: avanços, desafios e o futuro do projeto Olho Vivo

Por Matheus Baptiston Herdy Menossi Pace 

Já no ano de 2020, alinhada com uma tendência internacional, a Polícia Militar do Estado de São Paulo deu início ao projeto “Olho Vivo”, acoplando ao fardamento de seus agentes câmeras corporais, conhecidas como body-worn câmeras, ou simplesmente câmeras operacionais portáteis (COPs). O projeto ganhou efetiva força em 2021, com o planejamento da PMESP para implementação das câmeras em todos os batalhões da capital, e com pretensão atual de adoção dos equipamentos em todo o Estado.

A recente morte do menino Ryan, de 4 anos, morto em uma operação na Baixada Santista realizada no último dia 5, é mais um episódio que demonstra a necessidade de tornar obrigatório o uso desses aparelhos, em larga escala. Outros inúmeros exemplos poderiam ser fornecidos, seja em São Paulo, seja Brasil afora: diuturnamente se vê, nos jornais, notícias de ações policiais que poderiam ser objeto de mais preciso escrutínio se os fatos fossem acompanhados de algum testemunho presencial ou, como se está a defender, captação audiovisual.

Em outros países, a instalação das câmeras nas fardas de agentes de segurança pública representou nítido declínio na letalidade policial e na letalidade do policial. No Brasil, desde o início do projeto Olho Vivo, a estatística também tem mostrado uma nítida redução no número de Mortes Decorrentes de Intervenção Policial, bem como de Mortes em Serviço. Entre 2019 e 2022, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública identificou, nas unidades que fizeram uso das câmeras, uma redução de 76% na letalidade policial, com uma queda de 44% nos casos de vitimização policial[1].

Os equipamentos não foram, ainda, adotados em todas as agências de segurança pública do Estado de São Paulo. Em razão da função constitucional imposta às Polícias Militares dos Estados, de realização do policiamento ostensivo (art. 144, §5º, CR/88), devem elas serem as primeiras destinatárias de políticas de adoção desses equipamentos, claro. Não há nenhum impeditivo, entretanto, para que qualquer órgão ou corporação responsável pelo exercício público do poder de polícia seja abastecido com esses dispositivos.

Pelo contrário: em se tratando de medida que efetivamente viabiliza o controle posterior do uso da força e a legalidade da intervenção do Estado na esfera de liberdade de cada um, a adoção das câmeras, em diferentes órgãos públicos, parece ser um caminho em direção à promoção de direitos e garantia das liberdades.

Como funcionam elas hoje, entretanto, no Estado de São Paulo?

No âmbito da PMESP, as Câmeras Operacionais Portáteis devem guardar observância a três documentos essenciais:

  1. O edital de pregão eletrônico acerca do fornecimento das câmeras;
  2. O Procedimento Operacional Padrão nº 5.16.00; e
  3. A Portaria Complementar PM-1-4/02/2024.

O primeiro deles estabelece os parâmetros que as empresas prestadoras de serviço (hoje, consórcio entre a Axon e a Advanta) devem observar acerca do funcionamento técnico das câmeras: qual a capacidade de seu armazenamento, qual a resolução de mínima do vídeo por elas captado, quais funcionalidades devem ter, e assim por diante. Referidos parâmetros, ainda que possam ser objeto de alguma discussão dentro da PMESP, com ou sem a sociedade civil, são delimitados pela Diretoria de Tecnologia da Informação (DTIC), da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo. A última palavra é, portanto, do Governo do Estado.

Já o POP nº 5.16.00 tem a finalidade de, dentro da PMESP, definir a forma de uso dessas câmeras. Com um mapa descritivo, separado em atividades críticas, sequência de ações, resultados esperados e possibilidades de erro, o documento traz informações de como o equipamento deve ser manuseado, em que ocasiões deve ser acionado, como deve a ocorrência filmada por câmera ser relatada, e assim por diante. Cabe aqui dizer que, com a expansão do uso das COPs, a PMESP também tem incluído referidas câmeras e a devida observância às suas normas de uso como parte essencial de outros Procedimentos Operacionais Padrão – a título de exemplo, os procedimentos que disciplinam as regras de abordagem policial.

Por fim, a Portaria Complementar PM-1-4/02/2024, em observância à norma pré-estabelecida pelo Ministério da Justiça, traz a necessidade de uso das câmeras em todas as ações policiais, com prioridade de implementação dos equipamentos em tropas que realizem operações de grande porte ou de preservação da ordem pública.

Hoje, algumas características essenciais das COPs merecem destaque: primeiro, o fato de que a gravação é realizada de maneira ininterrupta, não sendo possível ao agente policial desligar/desativar a câmera, muito menos apagar seu conteúdo ou realizar qualquer edição/alteração. Segundo, que as filmagens podem ser diferenciadas entre gravações “de rotina”, em que não há captação deliberada da cena, e gravações “intencionais”, em que o agente, diante de fato relevante, registra no equipamento que o momento é de especial nota para segurança pública.

A modalidade da gravação impacta em duas características essenciais: a qualidade da filmagem e o tempo pelo qual o arquivo permanece disponível em nuvem para ser acessado. No caso das captações de rotina, o atual tempo de preservação das imagens é de 90 dias, sendo que o filme não vem acompanhado de registro de áudio. Já nas gravações intencionais, há captação de som e o arquivo permanece armazenado pelo período de 1 ano. Em qualquer hipótese, o acesso ao material fica, sempre, condicionado à prévia autorização judicial.

Novos desafios para Defesa

A implementação em larga escala das Câmeras também significa, em certa medida, novos desafios para a Defesa. Com a vinda de prova audiovisual para os autos, as investigações têm o potencial de reduzir, se não eliminar, as controvérsias sobre a materialidade e autoria de determinado crime.

Nesse sentido, o exercício de uma Defesa técnica e atenta torna-se ainda mais importante: se diminuem as dúvidas em relação à objetividade de determinado fato, a análise subjetiva da cena ganha especial centralidade. Não só: questões antecedentes ao suposto crime também vêm à tona: a abordagem policial foi fundada, justa e legal? Houve uso excessivo da força? Qual foi o método de uso da força empregado?

A Defesa também ganha uma missão, a depender do caso, de lutar contra o tempo. Afinal, não raro a captação da cena pelas câmeras corporais tem o potencial de comprovar as alegações do Acusado: nesses casos, diligenciar de maneira célere para obtenção das gravações é uma necessidade, considerando o exíguo tempo pelo qual a prova cinematográfica fica armazenada nos servidores policiais (conforme informado, 90 dias para gravações de rotina, 1 ano para gravações intencionais). Em igual sentido, necessária rápida ação nos casos em que, na representação da vítima, as filmagens podem comprovar a prática do crime.

Futuro das Câmeras Operacionais Portáteis (COPs)

Existem diversas cautelas a serem tomadas na implementação das câmeras, bem como existem inúmeras melhorias passíveis de serem realizadas. Hoje, raramente há, no registro de boletins de ocorrência, a anotação, pelos policiais, acerca da existência ou não de captação dos fatos que ali estão sendo comunicados. A medida, ainda que simples, em muito poderia ajudar para solução de crimes ou para contenção de abusos por parte do Estado.

Recentemente, organizações da sociedade civil tem se insurgido contra a precarização das COPs, cujo uso tem diminuído. Apontam, de maneira acertada, que o desmonte da política de adoção dos equipamentos tem provocado o aumento de índices de letalidade policial e do policial, na contramão do avanço observado entre 2019 e 2022. A situação também tem se agravado em razão dos novos parâmetros incluídos em edital recém-publicado pelo Governo do Estado que, dentre outras coisas, pretende diminuir o tempo pelo qual as filmagens ficam armazenadas.

Fato é que o acoplamento de câmeras nas fardas de agentes policiais reflete uma tendência global, e que ao que parece, veio para ficar. Cabe a cada Estado e à cada instituição, claro, elaborar políticas e diretrizes específicas para o uso desses equipamentos. Entretanto, o cenário atual clama, mais que nunca, pela edição de um documento que, em escala nacional, possa garantir a adoção desses aparelhos pelo poder público e, mais que isso, padronizar o seu uso.

 

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[1] Conforme https://fontesegura.forumseguranca.org.br/o-que-sabemos-e-o-que-nao-sabemos-sobre-o-impacto-das-cameras-corporais-na-seguranca-publica/. Acesso em 14/11/2024.